terça-feira, 4 de março de 2008

O TESTEMUNHO DOS PATRÍSTICOS


Os patrísticos se nos opõem cavilosamente (refiro-me aos escritores antigos e, além disso, de uma era melhor), como se os tivessem por sufragadores de sua impiedade, por cuja autoridade a contenda pudesse ser dirimida e se nos inclinaria, para falar até com extremada modéstia, a melhor parte da vitória. De fato, ainda que muitas coisas tenham sido escritas por esses patrísticos, com admirável descortino e reconhecida excelência, em certos casos, contudo tem-lhes acontecido o que só costuma acontecer aos homens, isto é, estes filhos piedosos, com a agudeza de espírito, de discernimento e de compreensão, com que são dotados, deles só cultuam os lapsos e erros. Aquilo, entretanto, que com acerto disseram, ou não o observam, ou o dissimulam, ou o deturpam, de sorte de possas dizer que sua única preocupação tem sido catar esterco em meio ao ouro. Então, contra nós investem com ímpios brados como sendo nós desprezadores e inimigos dos patrísticos. Nós, porém, tão longe estamos de desprezá-los que, se fosse esse nosso presente propósito, de nenhuma dificuldade me seria possível comprovar- lhes com as próprias opiniões a maior parte daquilo que estamos hoje afirmando. Contudo, em tais moldes lhes versamos os escritos que temos de ter sempre isto em mente [1Co 3.21-23]: tudo é nosso para servir-nos, não para dominar sobre nós, e nós somos de um, Cristo, a quem se deve, sem exceção, em tudo obedecer. Quem não observa esta distinção, na fé nada terá de sólido, uma vez que muita coisa ignoraram estes santos varões, não raro discreparam entre si, por vezes até a si mesmos se contradisseram.
Não sem razão, frisam eles que somos admoestados por Salomão [Pv 22.28] a não ultrapassarmos os marcos antigos que nossos pais estabeleceram. Mas, a norma não é a mesma em se tratando de limites de glebas e em questão de obediência da fé. Mais apropriada é esta que se estabelece nestes termos: "esqueça seu povo e a casa de seu pai" [Sl 45.10]. Se, porém, com tanto ardor se regozijam em avllhgorei – alegorizar], por que não adotem os apóstolos como pais, antes que a qualquer outro, cujos termos prescritos não é lícito remover? Ora, assim interpretou Jerônimo, cujas palavras eles inseriram em seus cânones. E se querem que sejam fixos os limites destes a quem entendem por pais, por que eles próprios tão impiedosamente os ultrapassam, quantas vezes lhes apraz? Do elenco dos patrísticos eram aqueles dos quais um disse que nosso Deus não come, nem bebe, e assim não tem necessidade de cálices, nem de pratos; outro, que os ritos sagrados não requerem ouro, nem com ouro se fazem aceitáveis as coisas que com ouro não se compram. Ultrapassam, portanto, esse limite, quando em seus cerimoniais tão efusivamente se deleitam com o ouro, a prata, o marfim, o mármore, as pedras preciosas, as sedas, nem pensam que Deus só é devidamente adorado se o for através de tudo o que derive em requintado esplendor, ou, melhor, em extravagante pompa.
Patrístico era aquele que sentenciou que, por isso, sem reservas, fazia uso de carne no dia em que os demais dela se abstinham: que era cristão. Desse modo, eles ultrapassam os limites, quando com terríveis exprobrações execram a alma que tenha provado carne durante a quaresma. Patrísticos eram esses dos quais um declarou que o monge que não trabalhasse com as próprias mãos fosse julgado igual ao assaltante, ou, se o preferes, ao ladrão; o outro, que não era próprio aos monges viverem do alheio, mesmo se fossem assíduos nas contemplações, nas orações, nos estudos. Também este limite eles têm violado, quando encerraram em prostíbulos e bordéis os ociosos e bojudos ventres dos monges, para que se cevassem dos bens alheios.
Patrístico era quem afirmou ser horrenda abominação ver-se pintada em templos de cristãos a imagem, seja de Cristo, seja de qualquer santo. Tampouco foi isto pronunciado pela voz de um único homem, mas até decretado por um concílio eclesiástico: que não se pinte em paredes o que se adora. Muito longe está de que se contenham dentro destes limites, quando não deixam sequer um canto vazio de imagens. Aconselhou outro patrístico que, após havermos cumprido o dever de humanidade para com os mortos, em sepultando-os, os deixássemos descansar. Eles rompem totalmente estes limites quando incutem a perpétua solicitude dos mortos.
Do elenco dos patrísticos era aquele que testifica que a substância do pão e do vinho permanecem assim na Santa Ceia, e não cessam, como em Cristo, o Senhor, a substância e natureza humana subsistem unidas à divina. Desse modo, ultrapassam o limite quantos imaginam que, recitadas as palavras do Senhor, cessa a substância do pão e do vinho, para que se transubstancie em corpo e sangue.

Patrísticos eram os que, como exibiam a toda a Igreja uma só Eucaristia, e como, ademais, excluíam dela os dissolutos e os criminosos, assim drasticamente condenavam a todos aqueles que, presentes, dela não participassem. Eles removeram esses limites para bem longe, quando não apenas os templos, mas até as casas particulares, enchem com suas missas, a cuja participação a todo mundo admitem, por mais vis e degenerados que sejam, e a cada um com tanto maior prazer quanto maior é a gorjeta? A ninguém convidam à fé em Cristo e à genuína comunhão dos sacramentos, antes, mercadejam sua própria obra como sendo a graça e o mérito de Cristo!
Patrísticos eram os dois dos quais um decretou que fossem de todo excluídos da participação da Santa Ceia de Cristo quantos, satisfeitos em tomarem um dos elementos, do outro se abstinham; o outro contende acirradamente que não se deve negar ao povo cristão o sangue de seu Senhor, a cuja confissão seu próprio sangue ordena que seja derramado. Eles subverteram também estes limites, quando, em virtude de lei inviolável, determinaram exatamente o mesmo que aquele punia com excomunhão, e este com válida razão condenava.

Patrístico era o que, se tratando de matéria obscura, asseverou ser temeridade decidir por uma ou outra das partes sem testemunhos claros e evidentes da Escritura. Eles se esqueceram deste limite quando, à parte de qualquer palavra de Deus, promulgam tantas constituições, tantos cânones, tantas determinações magisteriais.

Patrístico era aquele que, entre outras heresias, reprovou a Montano por ter sido o primeiro a impor leis acerca de jejuns. Também a este limite o excederam em muito quando, mediante leis extremamente estritas, sancionaram os jejuns.

Patrístico era aquele que sustentou que não se deve proibir o matrimônio aos ministros da Igreja, e declarou ser castidade a coabitação com a própria esposa. E Patrísticos eram aqueles que anuíram à sua opinião. Destes limites se distanciaram eles quando, com extremo rigor, impuseram a seus sacerdotes o celibato.

Patrístico era aquele que sentenciou que se deve ouvir a um só, Cristo, de quem foi dito: "A ele ouvi" [Mt 17.5]; nem se deve atentar para o que, antes de nós, outros ou disseram, ou fizeram, mas para o que Cristo preceituou, que é de todos o primeiro. Este limite eles próprios nem eles mesmos prescrevem, nem permitem que outros o prescrevam, quando, antes, constituem por mestres a quem quer que sejam, e não a Cristo, tanto para si próprios quanto para os demais.
Patrístico era aquele que contende que não se deve antepor a Igreja a Cristo, visto que ele sempre julga segundo a verdade dos fatos, mas que os juízes eclesiásticos, como os demais homens, se equivocam na maior parte das vezes. Rompido totalmente também este limite, não hesitam em afirmar que toda a autoridade da Escritura depende do arbítrio da Igreja.
Os patrísticos todos, em unânime consenso, abominaram e a uma voz apostrofaram o contaminar-se a santa Palavra de Deus com as sutilezas dos sofistas e o enredilhar- se nas disputas dos dialéticos. Porventura eles se contêm dentro destes limites, quando, em toda a vida, não engendram outra coisa senão toldar e prejudicar a simplicidade da Escritura com infindas discussões e querelas mais do que sofísticas, de tal sorte que, se os patrísticos voltassem agora à vida, e ouvissem esse gênero de debate a que esses chamam de teologia especulativa, nada haveriam menos de crer que se tratar de troca de opiniões acerca de Deus? Na verdade esta nossa oração teria de ser derramada para além de seus justos limites, se eu quisesse passar em revista quão petulantemente estes sacodem de sobre si o jugo dos patrísticos, de quem desejam parecer filhos obedientes. Não me seriam suficientes meses, realmente anos até. E, não obstante, eles são de tão desabusada e deplorável impudência, que ousam invectivar-nos de que não hesitamos em transgredir os limites antigos!


João Calvino. As Institutas ou Tratado da Religião Cristã. Vol. 1. Edição clássica. , pp. 31-34.

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