(II Coríntios 12.9)
O
que você olharia se tivesse apenas três dias de visão?
Helen
Keller (1880-1968), uma mulher extraordinária, cega, surda e muda desde bebê,
nos chama a atenção para a apreciação de nossos sentidos, algo que normalmente
não percebemos. Apenas de posse do sentido do tato e uma perseverança
inigualável, sob a orientação de Anne Sullivan Macy, Keller pôde aprender a ler
e escrever pelo método Braille, chegando mesmo a falar, por imitação das
vibrações da garganta de sua preceptora, as quais captava com as pontas dos
dedos.
O
esforço de sua mente em procurar se comunicar com o exterior teve como
resultado o afloramento duma inteligência excepcional, considerada a maior
vitória individual da história da educação. Ela foi uma educadora, escritora e
advogada de cegos. Tinha muita ambição e grande poder de realização. Ao lado de
Sullivan, percorreu vários países do mundo promovendo campanhas para melhorar a
situação dos deficientes visuais e auditivos. É considerada uma das grandes
heroínas do mundo. Essa mulher alterou a percepção do deficiente.
Em
seus escritos Helen disse muitas palavras que quero compartilhar com vocês.
Ela
disse em alguns momentos: Talvez seria uma bênção se todo ser humano, de
repente, ficasse cego e surdo por alguns dias no principio da vida adulta. As
trevas o fariam apreciar mais a visão e o silencio lhe ensinaria as alegrias do
som. De vez em quando testo meus amigos que enxergam para descobrir o que eles veem.
Há pouco tempo perguntei a uma amiga que voltava de um longo passeio pelo
bosque o que ela observara. “Nada de especial”, foi à resposta.
Como
é possível, pensei, caminhar durante uma hora pelos bosques e não ver nada
digno de nota? Eu, que não posso ver, apenas pelo tato encontro centenas de
objetos que me interessam. Sinto a delicada simetria de uma folha. Passo as
mãos pela casca lisa de uma bétula ou pelo tronco áspero de um pinheiro. Na
primavera, toco os galhos das árvores na esperança de encontrar um botão, o
primeiro sinal da natureza despertando após o sono do inverno. Por vezes,
quando tenho muita sorte, pouso suavemente a mão numa arvorezinha e sinto o
palpitar feliz de um pássaro cantando.
Às
vezes meu coração anseia por ver tudo isso. Se consigo ter tanto prazer com um
simples toque, quanta beleza poderia ser revelada pela visão! E imaginei o que
mais gostaria de ver se pudesse enxergar, digamos por apenas três dias. Interessante olhar para essa moça nascida em Tucscumbia,
Alabama, EUA, em 1880, Helen Keller teve febre aos 18 meses, o que a deixou
cega e surda.
Ela
disse que dividiria esse período em três partes.
No primeiro dia gostaria de ver as pessoas cuja
bondade e companhias fizeram minha vida valer a pena. Não sei o que é olhar
dentro do coração de um amigo pelas “janelas da alma”, os olhos. Só consigo
“ver” as linhas de um rosto por meio das pontas dos dedos. Posso perceber o
riso, a tristeza e muitas outras emoções. Conheço meus amigos pelo que toco em
seus rostos.
Como
deve ser mais fácil e muito mais satisfatório para você, que pode ver, perceber
num instante as qualidades essenciais de outra pessoa ao observar as sutilezas
de sua expressão, o tremor de um músculo, a agitação das mãos. Mas será que já
lhe ocorreu usar a visão para perscrutar a natureza íntima de um amigo? Será
que a maioria de vocês que enxergam não se limita a ver por alto as feições
externas de uma fisionomia e se dar por satisfeita?
Por
exemplo, você seria capaz de descrever com precisão o rosto de cinco bons
amigos? Como experiência, perguntei a alguns maridos qual a exata cor dos olhos
de suas mulheres e muitos deles confessaram, encabulados, que não sabiam. Ah,
tudo que eu veria se tivesse o dom da visão por apenas três dias!
O
primeiro dia seria muito ocupado. Eu reuniria todos os meus amigos queridos e
olharia seus rostos por muito tempo, imprimindo em minha mente as provas
exteriores da beleza que existe dentro deles. Também fixaria os olhos no rosto
de um bebê, para poder ter a visão da beleza ansiosa e inocente que precede a
consciência individual dos conflitos que a vida apresenta. Gostaria de ver os
livros que já foram lidos para mim e que me revelaram os meandros mais
profundos da vida humana. E gostaria de olhar nos olhos fiéis e confiantes de
meus cães, o pequeno scottie terrier e o vigoroso dinamarquês.
À
tarde daria um longo passeio pela floresta, intoxicando meus olhos com belezas
da natureza. E rezaria pela glória de um pôr-do-sol colorido. Creio que nessa
noite não conseguiria dormir. No dia seguinte eu me levantaria ao amanhecer
para assistir ao empolgante milagre da noite se transformando em dia.
Contemplaria assombrado o magnífico panorama de luz com que o sol desperta a terra
adormecida.
Esse
dia eu dedicaria a uma breve visão do mundo, passado e presente. Como gostaria
de ver o desfile do progresso do homem, visitaria os museus. Ali meus olhos,
veriam a história condensada da Terra -- os animais e as raças dos homens em
seu ambiente natural; gigantescas carcaças de dinossauros e mastodontes que
vagavam pelo planeta antes da chegada do homem, que, com sua baixa estatura e
seu cérebro poderoso, dominaria o reino animal.
Minha
parada seguinte seria o Museu de Artes. Já senti pelo tato as cópias dos frisos
do Paternon e a beleza rítmica do ataque dos guerreiros atenienses. As feições
nodosas e barbadas de Homero me são caras, pois também ele conheceu a cegueira.
Assim, nesse meu segundo
dia, tentaria sondar
a alma do homem por meio de sua arte. Veria então o que conheci pelo tato. Mais
maravilhoso ainda, todo o magnífico mundo da pintura me seria apresentado. Mas,
eu poderia ter apenas uma impressão superficial. Dizem os pintores que, para se
apreciar a arte, real e profundamente, é preciso educar o olhar. É preciso,
pela experiência, avaliar o mérito das linhas, da composição, da forma e da
cor. Se eu tivesse a visão, ficaria muito feliz por me entregar a um estudo tão
fascinante.
À
noite de meu segundo dia seria passada no teatro ou no cinema. Como gostaria de
ver a figura fascinante de Hamlet ou
o tempestuoso Falstaff no colorido
cenário elisabetano! Não posso desfrutar da beleza do movimento rítmico senão
numa esfera restrita ao toque de minhas mãos. Só posso imaginar vagamente a
graça de uma bailarina, como Pavlova, embora conheça algo do prazer do ritmo,
pois muitas vezes sinto o compasso da música vibrando através do piso. Imagino
que o movimento cadenciado seja um dos espetáculos mais agradáveis do mundo.
Entendi algo sobre isso, deslizando os dedos pelas linhas de um mármore
esculpido; se essa graça estática pode ser tão encantadora, deve ser mesmo
muito mais forte a emoção de ver a graça em movimento. Na manhã seguinte, ávida
por conhecer novos deleites, novas revelações de beleza, mais uma vez receberia
a aurora.
O terceiro dia, passarei no mundo do trabalho, nos
ambientes dos homens que tratam do negócio da vida. A cidade é o meu destino. Primeiro,
paro numa esquina movimentada, apenas olhando para as pessoas, tentando, por
sua aparência, entender algo sobre seu dia-a-dia. Vejo sorrisos e fico feliz.
Vejo uma séria determinação e me orgulho. Vejo o sofrimento e me compadeço.
Caminhando
pela 5ª Avenida, em Nova York, deixo meu olhar vagar, sem se fixar em nenhum
objeto em especial, vendo apenas um caleidoscópio fervilhando de cores. Tenho
certeza de que o colorido dos vestidos das mulheres movendo-se na multidão deve
ser uma cena espetacular, da qual eu nunca me cansaria. Mas talvez, se pudesse
enxergar, eu seria como a maioria das mulheres – interessada demais na moda
para dar atenção ao esplendor das cores em meio à massa.
Da
5ª Avenida dou um giro pela cidade – vou aos bairros pobres, às fábricas, aos
parques onde as crianças brincam. Viajo pelo mundo visitando os bairros
estrangeiros. E meus olhos estão sempre bem abertos tanto para as cenas de
felicidade quanto as de tristeza, de modo que eu descubra como as pessoas vivem
e trabalham, e compreendê-las melhor.
Meu
terceiro dia de visão está chegando ao fim. Talvez haja muitas atividades a que
devesse dedicar as poucas horas restantes, mas aço que na noite desse último
dia vou voltar depressa a um teatro e ver uma peça cômica, para poder apreciar
as implicações da comédia no espírito humano.
À
meia-noite, uma escuridão permanente outra vez se cerraria sobre mim. Claro,
nesses três curtos dias eu não teria visto tudo que queria. Só quando as trevas
descessem de novo é que me daria conta do quanto eu deixei de apreciar. Talvez
este resumo não se adapte ao programa que você faria se soubesse que estava
prestes a perder a visão. Nas sei que, se encarasse esse destino, usaria seus
olhos como nunca usara antes. Tudo quanto visse lhe pareceria novo. Seus olhos
tocariam e abraçariam cada objeto que surgisse em seu campo visual. Então,
finalmente, você veria de verdade, e um novo mundo de beleza se abriria para
você. Eu, que sou cega, posso dar uma sugestão àqueles que veem: usem seus olhos como se amanhã fossem perder
a visão. E o mesmo se aplica aos outros sentidos. Vejam as dicas profundas
de Helen:
ü
Ouçam a música das vozes,
ü
Ouçam o canto dos pássaros,
ü
Ouçam os possantes acordes de uma
orquestra, como se amanhã fossem ficar surdos.
ü
Toquem cada objeto como se amanhã
perdessem o tato.
ü
Sintam o perfume das flores, saboreiem
cada bocado, como se amanhã não mais sentissem aromas nem gostos.
ü
Usem ao máximo todos os sentidos;
ü
Gozem de todas as facetas do prazer e
da beleza que o mundo lhes revela pelos vários meios de contato fornecidos pela
natureza.
ü
De todos os sentidos, estou certa de
que a visão deve ser o mais delicioso.
Quando
lemos a biografia dessa moça, sabemos da fala dos especialistas: Helen está condenada à vida eterna de
escuridão e silêncio. Eles estavam errados porque o Deus de toda graça,
amor e cuidado colocou um anjo na vida de Helen, a jovem Anne Sullivan Macy.
Ela a ajudou a fazer associações entre objetos e letras que eram colocados em
suas mãos. No meio da fraqueza, ela encontrou forças. E percebeu o que poderia
fazer. Com as aulas de fonética aprendeu a falar inglês, francês e alemão. Fez
os cursos de Latim, grego e história romana. Em 1900 entrou para a Faculdade
Radcliffe. Ela chegou a fazer um filme sobre sua própria vida.
Ela
se tornou uma célebre e prolífica escritora, filósofa e conferencista, uma
personagem famosa pelo extenso trabalho que desenvolveu em favor das pessoas
portadoras de deficiência. Keller viajou muito e expressou de forma contundente
suas convicções. Membro do Socialist
Party of America e do Industrial
Workers of the World, participou das campanhas pelo voto feminino, direitos
trabalhistas, socialismo e outras causas de esquerda. Ela foi introduzida no Alabama Women's Hall of Fame em 1971.
Encerro
a reflexão citando essa heroína da vida: “Mantenha
seu rosto voltado para o sol e você não conseguirá ver a sombra”.
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Alcindo Almeida: membro da equipe pastoral
da IPALPHA.
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